Se a Revolução Francesa pode ser lida como o ponto de inflexão entre o Antigo Regime e a modernidade política, sua contribuição mais duradoura talvez resida na profunda reorganização de seus marcos normativos e institucionais. Nesta segunda parte do artigo, o foco desloca-se da inspiração filosófica e crítica iluminista para a consolidação jurídica e estrutural do novo regime revolucionário.
A centralidade da lei, a positivação dos direitos naturais, a reconfiguração da relação entre Igreja e Estado, e a ruptura com os privilégios fiscais e feudais são alguns dos aspectos que evidenciam como a Revolução buscou reorganizar não apenas o poder político, mas o próprio corpo do Estado francês. Trata-se de entender como os princípios abstratos do Iluminismo ganharam forma concreta por meio de instituições, decretos e reformas que moldaram as bases do constitucionalismo moderno.
Neste panorama, analisaremos as características jurídico-normativas da Revolução Francesa e os efeitos da crise econômica sobre a reorganização do Estado, revelando como esses elementos não só impulsionaram a queda do Antigo Regime, como também inauguraram os contornos da cidadania moderna.
3. Características jurídico-normativas da Revolução Francesa
A Revolução Francesa não apenas transformou radicalmente o cenário político e social do século XVIII, mas também promoveu uma profunda reconfiguração no campo jurídico. Ao rejeitar os fundamentos do Antigo Regime, os revolucionários instauraram uma nova arquitetura normativa, na qual a legalidade se tornou a principal ferramenta de organização da vida pública. Esse novo arranjo não se limitou a leis pontuais: tratava-se de uma mudança de paradigma, na qual a razão e a vontade popular substituíram a tradição e a autoridade real como fundamentos da ordem jurídica.
3.1 Legicentrisco: a lei como centro da vida política
O conceito de legicentrisco – ou seja, a centralidade da lei no exercício do poder – foi um dos pilares do pensamento revolucionário francês. Em contraste com o modelo absolutista, em que a autoridade do rei se sobrepunha a qualquer norma escrita, os revolucionários afirmaram que a lei deveria ser soberana, fruto direto da vontade geral.
Nesse novo modelo, não havia mais lugar para privilégios corporativos, exceções jurídicas ou ordens emanadas de autoridades pessoais. A norma jurídica deveria ser universal, impessoal, racional e aplicável a todos, sem distinção de origem ou classe. Essa concepção refletia as influências iluministas de Rousseau e Montesquieu, especialmente no que se refere à ideia de contrato social e à separação entre os poderes do Estado.
Na prática, o legicentrisco representava uma reestruturação do poder. O rei, se ainda existisse, passava a ser constitucional. A autoridade do Estado emanararia das assembleias representativas, cuja função era legislar para o bem comum. A partir daí, o exercício da soberania passava a ser, fundamentalmente, legislativo, e não mais pessoal ou dinástico.
Essa racionalização da política por meio da lei não apenas elevava o papel das instituições, mas também criava uma nova cultura jurídica: o cidadão, mais do que súdito, era agora sujeito de direitos e deveres legalmente definidos.
3.2 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)
A promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em agosto de 1789, foi talvez o ponto culminante da virada jurídico-política da Revolução. Inspirada nos princípios do Iluminismo e nas experiências constitucionais britânicas e norte-americanas, a Declaração sistematizou os valores fundantes do novo regime, estabelecendo um ideal normativo que orientaria toda a legislação posterior.
Dentre seus principais princípios, destacam-se:
A igualdade de todos perante a lei, independentemente de nascimento ou classe social;
O reconhecimento da liberdade individual, de expressão e de culto como direitos naturais;
A concepção da propriedade privada como direito inviolável e sagrado;
A noção de que a lei é a expressão da vontade geral, devendo ser a mesma para todos.
Além de romper com os fundamentos jurídicos do Antigo Regime, a Declaração representou uma tentativa de universalizar os direitos civis e fundar a autoridade política no consentimento racional dos governados.
Juridicamente, tratou-se de um salto qualitativo: o direito natural foi positivado, e a moralidade política passou a ser codificada em normas constitucionais. A Declaração tornou-se, assim, um referencial para futuros ordenamentos jurídicos — da Constituição de 1791 até o Código Napoleônico de 1804 — e inspirou movimentos de emancipação em diversos continentes.
3.3 A constituição civil do clero (1790)
Uma das medidas mais controversas da Revolução foi a adoção da Constituição Civil do Clero, em 1790. Este dispositivo buscava reorganizar a relação entre Estado e Igreja, retirando do poder eclesiástico sua autonomia e submetendo-o à autoridade estatal.
A Constituição estipulava que:
Bispos e padres seriam eleitos pelo povo;
Os salários do clero passariam a ser pagos pelo Estado;
Os membros do clero deveriam jurar lealdade à Constituição.
Com isso, o clero tornava-se funcionalmente parte do aparelho estatal, perdendo seu status de autoridade independente. O objetivo era duplo: afirmar a soberania nacional sobre o poder religioso e integrar a Igreja à lógica do novo Estado laico e racional.
No entanto, a medida encontrou forte resistência. Muitos eclesiásticos se recusaram a prestar juramento, formando o chamado clero refratário, o que acirrou os conflitos entre religiosos e revolucionários e contribuiu para a instabilidade política dos anos seguintes.
Do ponto de vista jurídico-normativo, a Constituição Civil do Clero foi um marco na secularização da política moderna. Rompendo com séculos de simbiose entre trono e altar, os revolucionários franceses consolidaram a distinção entre fé e razão, entre espiritualidade e governança, inaugurando um modelo de laicidade que influenciaria fortemente os Estados modernos.
4. Economia e reorganização do Estado
A Revolução Francesa não foi apenas uma transformação política e jurídica — ela também se articulou profundamente com as condições econômicas que assolavam a França no final do século XVIII. Os fatores econômicos, longe de serem apenas pano de fundo, funcionaram como gatilhos imediatos para a eclosão dos eventos revolucionários, alimentando tanto a indignação popular quanto a urgência das reformas institucionais. A reorganização do Estado revolucionário precisou, assim, enfrentar os dilemas fiscais, agrários e produtivos herdados do Antigo Regime.
4.1 Crise fiscal e agrária
A França, às vésperas da Revolução, enfrentava uma profunda crise fiscal, derivada de séculos de má administração e dos altos custos associados às guerras constantes — em especial, a Guerra dos Sete Anos (1756–1763) e o apoio militar à Independência dos Estados Unidos (1776–1783). O Tesouro Real estava à beira da falência, e as tentativas de reforma tributária promovidas por ministros como Turgot, Necker e Calonne fracassaram diante da resistência da aristocracia e do clero.
Simultaneamente, o país vivia uma crise agrária intensa. As sucessivas más colheitas nas décadas de 1770 e 1780 elevaram drasticamente o preço dos alimentos básicos, como o pão, levando milhares de camponeses e trabalhadores urbanos à miséria e à fome. O descontentamento popular crescia na mesma medida em que os impostos recaíam quase exclusivamente sobre o Terceiro Estado — o grupo mais numeroso, porém menos privilegiado da sociedade.
Esse cenário explosivo, de escassez, inflação e injustiça tributária, produziu as condições sociais para a irrupção revolucionária. A crise econômica não apenas deslegitimou o modelo absolutista, como também forneceu a base material para as demandas por reforma profunda no aparato estatal.
4.2 Reforma tributária e fim dos privilégios
A queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789, e os acontecimentos subsequentes aceleraram o processo de reestruturação fiscal do Estado. Em agosto do mesmo ano, a Assembleia Nacional Constituinte decretou o fim dos privilégios feudais, abolindo os direitos senhoriais, as isenções fiscais da nobreza e do clero, e os monopólios de ofício.
Essa abolição dos privilégios tributários representou um dos marcos mais importantes da universalização do dever cívico, especialmente no que diz respeito à contribuição com os cofres públicos. Pela primeira vez na história francesa, estabelecia-se o princípio da igualdade fiscal entre os cidadãos, ainda que, na prática, sua implementação encontrasse resistência e desafios estruturais.
Do ponto de vista administrativo, a Revolução também promoveu a reorganização territorial e burocrática do Estado francês, criando departamentos, padronizando a arrecadação de impostos e racionalizando a gestão pública. Essa reestruturação visava não apenas uma maior eficácia econômica, mas também uma centralização funcional, que substituísse a fragmentação corporativa do Antigo Regime.
Em suma, a revolução fiscal e administrativa não foi apenas técnica — ela foi, sobretudo, política e simbólica. Ao reformar os alicerces econômicos do Estado, os revolucionários afirmaram que a cidadania moderna implicava corresponsabilidade fiscal. Em outras palavras, não haveria mais Estado para alguns e privilégios para outros: a nova ordem se construía com base na igualdade jurídica e tributária.
Conclusão
A Revolução Francesa não foi apenas um episódio de ruptura política; foi uma reconfiguração estrutural da ordem jurídica, econômica e institucional do Ocidente moderno. Ao instituir o princípio da legalidade como centro da vida pública e afirmar a soberania popular como fonte legítima do poder, os revolucionários inauguraram uma nova gramática política — em que o cidadão substitui o súdito, e a razão substitui a tradição.
No campo jurídico-normativo, a centralidade da lei (legicentrisco), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Constituição Civil do Clero traduziram em normas concretas os ideais iluministas, ao mesmo tempo em que consolidaram a ruptura com os pilares do Antigo Regime. Já na esfera econômica, a abolição dos privilégios fiscais e a reorganização do Estado representaram não só medidas de justiça social, mas também uma nova concepção de cidadania: igualitária, fiscalmente corresponsável e politicamente engajada.
Com isso, a Revolução Francesa deixou um legado que ultrapassa o século XVIII — um legado de instituições, princípios e debates que seguem pulsando nas democracias contemporâneas. Entender suas dinâmicas, portanto, não é apenas exercício de erudição histórica: é condição para compreender os fundamentos da política moderna.